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Meu Natal tinha o Menino Jesus e um burrinho. Pra que Papai Noel?

Por Ari Riboldi *

Nasci, na década de 1950, em zona de colonização italiana, no interior o Rio Grande do Sul. Sou o quarto filho de uma família de nove irmãos. Meu pai é o último dos quinze irmãos de uma família de emigrantes. Conforme a tradição, ele ficou morando na casa dos pais, para ampará-los na velhice. Só conheci a minha avó paterna, Sabina, chamada Pina. Ela contava as aventuras da longa travessia do oceano, da Itália até o Brasil, que teria durado seis meses, e outras histórias de confrontos com bugres, os índios que habitavam aquelas regiões.

A casa, bem simples, de madeira rústica de pinheiro, ficava no meio do mato, mas já havia muitas árvores frutíferas ao redor, como laranjeiras e bergamoteiras. A cozinha era separada da parte da casa onde havia os quartos de dormir. Tratava-se de um costume, uma vez que não existia, ainda, fogão a lenha, apenas uma lareira improvisada de barro, o que evitava incêndios nas moradias. Não havia separação entre a vida dos adultos e das crianças. As tarefas eram feitas em conjunto, nas lidas domésticas e na roça, cada um com responsabilidades compatíveis com a idade e a força.

Não pensem em fazenda. Era um pedaço de terra adquirido do Governo, pago em dinheiro ou em troca de trabalho na abertura de estradas. Cultiva-se basicamente milho e trigo, que forneciam a farinha da polenta e do pão. Um pequeno parreiral dava a uva para o vinho do ano inteiro, bebida de todas as refeições para os adultos. Ter o direito de tomar vinho correspondia a um ritual de passagem da vida de criança para a de adulto. Tudo era feito manualmente. Por isso o elevado número de filhos. Cada um representava mais uma enxada, um machado, uma foice, um facão... A cada ano, derrubava-se mais um pedaço de mato para ampliar a área de cultivo. Uma junta de bois puxava o arado. Uma parelha de mulas servia para puxar a carroça até a cidade e fazer a troca de produtos, nas casas de comércio. Raramente usava dinheiro. Creio que somente quando eram vendidos alguns porcos gordos para os frigoríficos.

De manhã, eu ia à escola a pé com meus irmãos, longe três quilômetros. Além da sacola de pano com o caderno e o lápis, carregava um litro de leite de vaca ainda quente, recém ordenhado pela mãe. Em prédio anexo à escolinha rural, morava um casal de professores que vinha da sede municipal e passava ali a semana lecionando. O leite garantia o seu café matinal. 

Não havia luz elétrica. À noite, usava-se lampião com querosene. Sem luz, sem rádio, televisão nem pensar, sem jornal, as notícias chegavam por meio de mascates que iam de casa em casa vendendo produtos, medicamentos,  ou em conversas com algum comerciante que já possuía rádio. Eles diziam: “Deu no rádio”. Passava a ser a informação do mundo, verdadeira e única.

Eu nunca ouvi qualquer história sobre o Papai Noel e seu trenó, puxado por renas, do Polo Norte, vindo sobre a neve com o saco de presentes. Essa figura não existia naquele meio. O bom velhinho de barba branca e vestes vermelhas jamais andou por lá. Na minha infância e de tantas outras pessoas, no meio rural, quem trazia os presentes era o Menino Jesus. Passava de casa em casa, com seu burrinho, deixando-os para as crianças que, ao longo do ano, tinham sido bem comportadas e obedientes. Embaixo do pinheirinho, ao lado do rústico presépio armado na sala, com as figuras do Menino Jesus, Maria, José, pastores, ovelhas, vacas, o chão forrado com barba-de-bode, cada um colocava o seu chapéu de trança de palha de trigo, e dentro dele grãos de milho ou um punhado de capim verde. Era o alimento para o burrinho recuperar forças e prosseguir a longa caminhada. Por recomendação dos pais, na noite de Natal, íamos bem cedo dormir. E nada de ousar levantar durante a noite. Poderia assustar o burro que iria embora sem que o “Bambin”, bebê, nome do Menino Jesus no dialeto vêneto, tivesse tempo para deixar os presentes.  No dia seguinte, no chapéu, encontravam-se os presentes, geralmente bolas de goma (uma borracha vermelha) para os meninos e bonecas para as meninas, mais algumas miniaturas de animais feitos com açúcar branco e colorido. Os grãos de milho e o capim não estavam mais lá. Depois do encantamento com os presentes, corria-se à frente de casa para ver as marcas – diligentemente providencias pelo pai - deixadas pelas ferraduras das patas do burrinho.

Assim era o meu Natal. Mais tarde, fui para a cidade estudar e comecei a ouvir falar e a ler sobre o Papai Noel e sua fábrica de presentes. Hoje, o Menino Jesus desapareceu. O bom velhinho tomou conta de tudo. Natal é sinônimo de Papai Noel e de presentes, no campo e na cidade. De modo particular, nos shoppings, os santuários do consumismo. Guardo, porém, boas lembranças do burrinho. Imagino vê-lo, de casa em casa, com o Deus Menino e seus presentes. Parece combinar mais com o espírito natalino, especialmente no campo. Apenas nostalgia. O Papai Noel, mesmo no nosso país tropical, sem frio e sem neve, tomou conta de tudo, fruto do marketing e do exacerbado consumismo.


* Professor, escritor e colunista do PortoWeb.
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