Nota Pública sobre o empresariamento na Saúde
27.12.2019
Editado em 30.12.2019
O Conselho Municipal de Saúde de Porto Alegre (CMS/POA), órgão permanente e deliberativo do Sistema Único de Saúde (SUS), vem a público manifestar seu repúdio à Prefeitura Municipal de Porto Alegre (PMPA) que anunciou, na quarta-feira, 18 de dezembro, a entrega de 96 unidades de saúde, representando 68% da Atenção Primária à Saúde (APS) da cidade, para a iniciativa privada por meio de um termo de colaboração com a Irmandade Santa Casa, Divina Providência, Instituto de Cardiologia e Associação Hospitalar Vila Nova (AHVN). A medida foi encaminhada após um acordo judicial, de 12 de dezembro, dentro da execução do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), entre os ministérios públicos e o município, tendo sido o CMS excluído de tal negociação. Ainda que a decisão judicial seja de caráter provisório e indique um prazo de 60 dias para uma alternativa adequada ao “modelo definitivo de equipe de estratégia de saúda na família”, as medidas construídas e apresentadas pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS), mesmo antes do acordo ter sido assinado, apontam para um modelo de privatização da Saúde com características irreversíveis.
Com a justificativa de perder recursos federais do Programa Saúde na Hora, a gestão do executivo municipal repete as mesmas práticas desenvolvidas ao longo de seu mandato. Práticas que utilizam o argumento da urgência, da falta de diálogo e de repassar a outrem a responsabilidade por sua ineficiência em gerir e planejar a Saúde. Práticas que revelam o modelo adotado de precarizar os serviços para terceirizar à iniciativa privada com o discurso de economicidade e ampliação da oferta. É inadmissível que planilhas rasas e mal elaboradas, sem evidências e estudo econômicos adequados, levem à cidade ao caos sanitário e à insustentabilidade da saúde, prejudicando e colocando em risco a vida de milhares de pessoas.
O que se analisa é que esta decisão intensificará ainda mais a situação caótica instalada de falta de médicos, enfermeiros e toda a equipe que compõe o atendimento necessário da população, além de não proteger os 1840 trabalhadores do Instituto Municipal de Estratégia de Saúde da Família (IMESF). Na medida que muitos trabalhadores, de diversas unidades de saúde, receberam o aviso prévio. O anúncio significa alterar o acesso sem garantia de vínculo, continuidade do atendimento e qualidade do cuidado. Os trabalhadores da atenção primária recebem qualificação específica para o atendimento da saúde da família e possuem vínculo estabelecidos com os usuários, o que reflete positivamente nos indicadores de saúde.
A territorialização já está sendo desconstituída, dificultando o acesso dos mais carentes e mais empobrecidos, a longitudinalidade do cuidado ficará seriamente comprometida e a promoção em saúde já não existe mais. Epidemiologicamente os indicadores despencam, demonstrando dados alarmantes e a verdade sobre a Saúde de Porto Alegre.
Indicadores epidemiológicos que insistem em contrariar os anúncios de publicidade da Prefeitura veiculados na tv aberta, tv a cabo, rádios, jornais e, até, em restaurantes. Anúncios aonde, infelizmente, a Prefeitura de Porto Alegre empenhou um montante maior que R$ 34 milhões de dinheiro público. Um valor superior, por exemplo, ao investido, em 2019, com recursos municipais na compra de medicamentos. De forma arbitrária ao controle social, sem discussão, sem diálogo e sem planejamento.
O CMS acredita que a emergência em Saúde vivida na capital se impõe à publicidade de governo. Lembra que os 1840 trabalhadores e suas famílias, na véspera do Natal, estavam sendo demitidos. Coincidentemente no mesmo período do início dos comerciais. Para quem faz, não é necessário pagar publicidade. Ela aparece nos postos de saúde, nos atendimentos, nos hospitais, nas praças, nas ruas, nas escolas, e, principalmente, nos sorrisos dos seus cidadãos.
O CMS denuncia que a ação que será instalada com o termo de colaboração dificilmente será revertida, significando uma saída definitiva. O termo é a entrega da principal porta de entrada aos serviços públicos de Saúde à exploração da iniciativa privada hospitalar, que não possui expertise em Saúde da Família. A exemplo da Clínica de Saúde da Família José Mauro Ceratti Lopes, na Restinga, que em outubro teve seu atendimento entregue à AHVN, através de um aditivo no contrato de gerenciamento do hospital da Restinga, reprovado pelo CMS. Com o aditivo, o valor do repasse municipal no contrato aumentou de R$ 300 mil para R$ 1,5 milhão. O serviço deveria contar semanalmente com 6 médicos com carga horária de 40 horas para atender a população local. Porém, conforme fiscalização do conselho, a clínica oferece apenas uma média de 2 médicos 40 horas.
Contrariando a constituição, o termo de colaboração representa o empresariamento irrestrito da assistência e de um direito humano garantido constitucionalmente. Revivendo a época anterior à instalação do IMESF, quando uma medida paliativa foi instalada de forma permanente.
É inadmissível que uma Secretaria de Saúde que se utiliza do discurso das “evidências científicas” apresente propostas sem considerar as evidências, já amplamente divulgadas no âmbito nacional e internacional, sobre o SUS e sobre a Saúde da Família, desconsiderando os principais atores do campo da saúde pública. Também é inadmissível que tais propostas, rejeitadas pelo CMS e por várias entidades do campo sanitário, sejam aceitas pelo Ministério Público. Sendo este, uma instituição permanente e essencial à função jurisdicional e à defesa da ordem jurídica e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art.127 da CF.). Tendo o MP função institucional de zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na carta federal, promovendo as medidas necessárias à sua garantia (art.129 II da CF), o órgão deve cobrar do gestor a responsabilidade pelos seus atos e omissões e, no caso especifico, ações que vem levando a cidade ao caos sanitário e à insustentabilidade das principais Políticas de Saúde. O que prejudica e coloca em risco a vida de milhares de pessoas, a exemplo do que se assiste em várias cidades próximas como Canoas e, em capitais, como o Rio de Janeiro.
Nesse sentido, o CMS convoca os órgãos de controle externo a atuarem na responsabilização do gestor pela omissão deliberada e pelo caos sanitário já vivido na cidade e reafirma que a ação que será instalada com o termo de colaboração dificilmente será revertida em 60 dias.
O CMS/POA destaca a deliberação da 8ª Conferência Municipal de Saúde, reafirmando o fortalecimento da atenção básica e a defesa do serviço público prestado com qualidade e de forma direta pelo Estado. Apenas desta maneira será possível garantir a assistência nos territórios mais vulneráveis, respeitando a legislação do SUS, seus princípios de universalidade, equidade e integralidade, de forma longitudinal e democrática.