O Conselho Municipal de Saúde de Porto Alegre (CMS/POA), órgão permanente e deliberativo do Sistema Único de Saúde (SUS), vem a público manifestar-se sobre o termo de convênio celebrado, no dia 17/04/2020, pelo município de Porto Alegre e a União Brasileira de Educação e Assistência (UBEA), mantenedora do Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (HSL/PUCRS).
Após o CMS/POA encaminhar comunicado à Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos (PJDDH), relacionada às irregularidades na condução do processo em questão e pedindo a anulação do referido termo de convênio, o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MPE/RS) ajuizou ação civil pública nº 016250004222020, objetivando o cumprimento da legislação em vigor, que obriga o gestor a submeter ao crivo do CMS os contratos e convênios antes da execução, e também o cumprimento da recomendação para o Município, expedida pela PJDDH em 16/03/2020. A ação civil foi impetrada no Foro Central do Tribunal de Justiça do Estado, contra o município e a UBEA, no dia 24/04/2020, e sua inicial solicita antecipação de tutela, caso a ordem judicial seja favorável à ação, o município e a PUCRS terão que suspender o termo até a deliberação do CMS/POA. Em caso de descumprimento da determinação, a ação pede, ainda, a fixação de multa diária a cada réu no valor de R$ 30mil e responsabilização penal e político-administrativa. Constam, também, como interessados na representação - o Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers) e o Conselho Regional de Medicina (CREMERS).
Em 09/03/2020, a direção-geral do HSL encaminhou ofício ao secretário municipal de Saúde solicitando o fechamento de área maternoinfantil do Sistema Único de Saúde (SUS) no HSL. O motivo alegado era a necessidade de reposicionamento do Hospital, redirecionando seus atendimentos para adultos e idosos e solicitando revisão do contrato anual, que está em aberto. Também referiu estar há meses em tratativas com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS/POA) com apresentação de estudos. O secretário de Saúde imediatamente encaminhou para análise e manifestação de proposta da transferência dos leitos para o Hospital Materno Infantil Presidente Vargas (HMIPV), sem ao menos solicitar um prazo, ao contrário, desencadeando, em praticamente um mês, a operacionalização da proposta de convênio.
O HMIPV, 100% público, é um hospital especializado com 67 anos de referência para a cidade na área maternoinfantil. Municipalizado há vinte anos quando a SMS de Porto Alegre (SMS/POA) assumiu a gestão direta. No início, houve um intenso processo de redesenho e investimento no Hospital, reafirmando as linhas de cuidado de Saúde da Mulher e da Criança. Importante destacar que essa qualificação foi interrompida com a perda, ao longo do tempo, do quadro de pessoal, que chegou a contar com 2 mil trabalhadores, tendo agora somente 796 servidores públicos. Esse desinvestimento gradual nos últimos anos acarretou na utilização parcial de seu potencial. Atualmente a capacidade é de 149 leitos, sendo que somente 110 leitos estão ativos em função da falta de trabalhadores. Outro ponto crucial é a alteração de comando único, na proposta do convênio a direção do HMIPV abre mão da gestão direta, passando a ser apenas um mero fiscal. Prejudicando, desta forma, o funcionamento sistêmico e integrado, na medida em que se terá uma duplicidade de vínculos e de gerenciamento em áreas estruturantes nas linhas de cuidado maternoinfantil na instituição.
Para o redimensionamento da capacidade instalada, de forma a garantir as condições sanitárias previstas para as diferentes áreas, são necessárias obras de reforma nas instalações do hospital, com adequações estruturais, além da reposição de pessoal. Porém, o convênio foi assinado e dada a ordem de início das obras, pelo prefeito e secretário de Saúde, no dia 20/04, sem que houvesse a aprovação dos projetos arquitetônicos apresentados pela PUCRS. Além disso, cada área deve ser analisada em separado pela Vigilância em Saúde, de acordo com as especificidades e parâmetros das normas vigentes para serviços de saúde.
O secretário de Saúde utilizou-se de expediente de contratação sem chamamento público, com a alegação de garantir a continuidade do atendimento, contrariando o art. 2º, incisos VII e VIII da Lei Complementar 277/92 e descumpriu mais uma vez, a decisão judicial da ação civil pública nº 5004915-44.2013.4.04.7100/RS, que determina a análise e aprovação prévia do controle social dos convênios e contratos que envolvem financiamento do SUS antes de sua execução.
Em março, a partir de notícias veiculadas na mídia que indicavam a possibilidade de fechamento de leitos no HSL, o CMS abriu processo solicitando manifestação do gestor municipal. Mesmo sendo provocado, omitiu-se e não respondeu à instância máxima de controle social do SUS no município, atitude incompatível no trato da administração pública. O gestor público tem o dever de guiar-se pelos princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência.
Outro processo com a documentação do convênio foi enviando ao CMS no dia 15/04/2020, e, no dia 17/04, foi assinado, antes de qualquer posicionamento do conselho. A SMS/POA, desta forma, não só obstruiu as atribuições legais do Conselho ferindo frontalmente a legislação do SUS, como autorizou repasse de recursos de outras ações e serviços sem justificativa, aprovação e previsão orçamentária de um volume de R$ 16 milhões. Também autorizou a ampliação de gastos com redução de 57 leitos, comparado aos 115 leitos contratualizados no termo firmado anteriormente com o HSL/PUC, e, ainda, destinando incremento de recursos referentes à Operação Inverno, divergente do que estabelece a Lei nº 12.696, de 23/03/2020, no seu artigo 3º sob a forma de recrutamento de pessoal pelo município.
O HSL recebia aproximadamente R$ 840 mil mensais em produção e incentivos atrelados às áreas de atuação em pediatria, psiquiatria e obstetrícia, incluindo UTI neonatal. A partir do novo convênio, haverá um incremento de R$ 1.385.809,30, o que equivale a um aumento de 190%, ficando o custo mensal em R$ 2.112.667,52, com a previsão de repasses já a partir de abril, e incremento de R$ 157.916,79 vinculado à “Operação Inverno”, nos meses de maio a setembro, onde o valor repassado será de R$ 2.270.584,31.
Amparado na Lei Complementar 141/2012, cabe ao CMS examinar a propriedade da transferência de recursos e/ou alocação de recursos em serviços de saúde. O gestor ainda descumpriu a Lei 8.666/93, que prevê que o plano de trabalho deverá conter, no mínimo, informações sobre etapas ou fases de execução, previsão de início e fim da execução do objeto, assim como a conclusão das etapas ou fases programadas. As lacunas do termo apontam, também, para a fragilidade jurídica do instrumento, sendo que não constam no processo os cronogramas: físico-financeiro para a execução das metas assistenciais previstas no convênio, de transferência de leitos e de ingresso de pessoal. Mesmo assim, prevê repasse financeiros a partir de abril de 2020.
O Conselho apontou, também, como argumento de nulidade do convênio, a ausência de estudo econômico, que justifique a motivação pela escolha de conveniamento, e aponte os benefícios assistenciais e econômicos para o município. A ausência de chamamento público impediu a isonomia de condições de concorrência, impossibilitando a comparação entre outras propostas. Também não houve estudo inicial apresentado sobre a ampliação da oferta assistencial diretamente pelo HMIPV, através de contratação de servidores públicos para suprimento das vacâncias existentes, alternativa que fortaleceria o Hospital Municipal e prescindiria assim da necessidade desse convênio.
Para espanto do CMS, a PUCRS não apresentou as intenções de fechamento das áreas e de redução de sua capacidade instalada para o SUS, que impactaram diretamente no processo de formação e nas relações ensino-serviço, não foi respeitada a comissão de gestão local de ensino-serviço - instância deliberativa dos projetos que envolvem o Distrito Docente Assistencial (com representação da gestão local e central da SMS, da PUCRS e dos Conselhos Distritais) das regiões Leste e Nordeste, e Partenon e Lomba do Pinheiro. Tal atitude unilateral fragiliza sua imagem de responsabilidade social com as necessidades da cidade, sendo uma instituição sem fins lucrativos, com um papel importante na formação de graduação dos cursos da Saúde e residência uni e multiprofissional. No entendimento do Conselho também não corresponde a sua trajetória de respeito e parceria com o controle social e suas instâncias. Sempre foram reconhecidos, pelo CMS, sua relevância como maior instituição de ensino privado do Estado e seu compromisso com a formação para o SUS. Por isso, a surpresa quando apresenta a manifestação de seus interesses, também à revelia do corpo de trabalhadores do Hospital, estudantes de graduação, professores, decidindo por uma mudança dessa magnitude e impacto social sem estabelecer o diálogo necessário com os envolvidos.
Não houve nenhuma apresentação por parte do gestor municipal às comunidades vinculadas aos Conselhos Distritais (CD) da Restinga e Extremo-Sul, Partenon e Lomba do Pinheiro, Leste e Nordeste, desconsiderando, assim, uma história de vinculo comunitário e referência desses serviços para essa população. Causa perplexidade que, em meio a um cenário da maior crise sanitária já vivida pelo SUS em função da Pandemia de COVID-19, a gestão municipal esteja conduzindo alterações na rede hospitalar que não tenham nenhuma relação com ampliação e qualificação de serviços, nem vinculação às medidas de emergência sanitária.
O gestor desconsiderou a demanda histórica da comunidade da Restinga e Extremo-Sul, que reivindica há muito tempo uma maternidade, e também o que estava previsto no Projeto PROADI do Hospital Moinhos de Vento, que previa a construção de um Hospital na Restinga e inclusão de área maternoinfantil. Houve alterações no projeto pactuado e aprovado pelo Conselho com a justificativa de que não havia volume suficiente de partos para esse serviço e que a cobertura do atendimento era feita pelo HSL. Com a retirada da referência maternoinfantil do HSL, a população terá que se deslocar até a área central da cidade, mais uma vez ampliando barreiras de acesso e desconsiderando as necessidades e desigualdades sociais de milhares de pessoas.
Infelizmente, uma gestão que não dialoga com seus trabalhadores e não respeita a tradição histórica de luta pelo direito à Saúde das comunidades da cidade – desconsidera o que tem apresentado como missão institucional: o foco nas pessoas. Novamente desconsidera os princípios da integralidade, descentralização, equidade e participação social na tomada de decisão, agindo de forma autoritária e irresponsável.
O que esse convênio explicita é um projeto de empresariamento da Saúde e do SUS, onde a SMS/POA desempenha uma função de agenciamento da vontade de governo, de repassar a função primordial e a essencialidade dos serviços de saúde para o setor privado, sob motivações distantes do interesse público e do fortalecimento do SUS.
Porto Alegre, 29 de abril de 2020.
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